Quem acompanha a carreira de José Paes de Lira com certeza deve se lembrar de suas apresentações apoteóticas com o grupo Cordel do Fogo Encantado. Lirinha, como é conhecido no meio artístico,também é escritor, poeta, um estudioso das letras, e além disso tem uma carreira solo na música. Neste mês de abril, ele está lançando seu novo disco, MÊIKE RÁS FÂN, com oito músicas que habitam o universo do spoken word.
“Parti de um estudo que eu já vinha fazendo sobre o corpo da voz, o grão da voz. Fiquei muito seduzido por esse universo”, ele conta, em um almoço com a reportagem da Bravo!
“Fiquei muito encantado pelo movimento do slam na periferia de São Paulo. Consegui me envolver um pouco através dos saraus. No período da produção do disco, dei um mergulho nisso aí, passei a ter uma convivência, tentando fazer o meu ritmo em poesia, trazendo esses elementos que são tão importantes para mim como artista, a palavra, o ritmo e a instrumentação, confundir tudo isso de uma forma que eu me sentisse empoderado para falar sobre.”
MÊIKE RÁS FÂN é o terceiro álbum solo de Lirinha; o anterior foi O labirinto e o desmantelo, de 2015. Mais experimental do que nunca, Lirinha afirma que planeja atuar “na vanguarda” para derivar o disco em shows e outras atividades. As oito músicas do disco são compostas apenas de sua voz e de batidas compassadas que a acompanham.
Iara Rennó canta em uma das faixas; em outra, uma inteligência artificial: “Quando descobri e cheguei perto desses programas que transformam texto em fala, achei maravilhoso, porque são muitas questões que me interessam para esse trabalho, como, por exemplo, a voz não ser real, um ter um grão, uma textura. Essa voz questiona a minha própria definição de que não é real.”
Seu novo disco, MÊIKE RÁS FÂN, flerta bastante com a música experimental. Você trabalha com uma poesia falada acompanhada de bases eletrônicas simples. Como foi o processo de composição das músicas?
MÊIKE RÁS FÂN são palavras inventadas. Eu busquei uma sonoridade nelas, por isso que fiz uma grafia que não deixasse uma interpretação de língua. Essa grafia terminou também compondo a ideia da palavra que, pensando comigo, seria o nome de uma estação de rádio.
Fazer esse disco foi mais uma busca por criar um cenário para que a história se passasse dentro dele. Tudo no universo da invenção, da criação. E aí terminou me dando essa atmosfera que eu queria construir. As músicas, os textos, as letras.
Tudo começou comigo partindo de uma frase: “O universo é mental.” E a partir disso eu trouxe essa atmosfera de visão cósmica, de intercomunicação. Então, surgiram alguns objetivos.
Um deles era a relação com a voz, porque eu sempre trouxe o elemento da récita e da declamação na minha música, mas nunca havia fundido ela à música. Por isso assumi a produção artística deste álbum também, para chegar nessa música dos sonhos.
Parti de um estudo que eu já vinha fazendo sobre o corpo da voz, o grão da voz. Fiquei muito seduzido por esse universo, me envolvi muito com o rap americano. E digo isso pela escola que eles têm, a experiência de captação, o registro dessas vozes junto com a música, a base e a instrumentação.
Também fiquei muito encantado pelo movimento do slam na periferia de São Paulo. Consegui me envolver um pouco através dos saraus. No período da produção do disco, dei um mergulho nisso aí, passei a ter uma uma convivência, tentando fazer o meu ritmo em poesia, trazendo esses elementos que são tão importantes para mim como artista, a palavra, o ritmo e a instrumentação, confundir tudo isso de uma forma que eu me sentisse empoderado para falar sobre.
Você tinha as poesias escritas quando começou?
Eu tinha muito rascunhos. Sou uma pessoa que escreve muito a mão. Tenho uns cadernos muito caóticos, inclusive. E tinha essa ideia que me conduziu, que joguei e transformei tudo em um feixe só. Um feixe, todos esses multi-horizontes num feixe só. Tô cheio de metáfora cósmica, tudo bem! Mas são as coisas que venho escrevendo. [risos]
Geralmente cada música tinha um momento na história de MÊIKE RÁS FÂN. Eu começo o disco com “Estrela Negríssima”, que foi uma situação de quando uma brasileira fotografou um buraco negro.
Na informação que chegou a mim, ela explicava que não era exatamente uma fotografia, mas uma leitura através das informações de ondas de rádio.
Houve até um debate político, de que aquilo não era real, que a fotografia era prova de que não era real. Esse debate me seduziu muito, porque me parecia tudo uma performance poética. Inclusive, uma revelação de uma fotografia através de dados, através de ondas. E aí eu construí essa primeira poesia. Abri o disco porque foi a primeira, mesmo. E ela fala sobre eu estar vendo essa fotografia do buraco, dedicando o meu amor a essa fotografia que eu estava vendo.
Você mencionou o slam, mas senti um pouco da poesia dos concretistas. Tem um pouco disso também?
Tem sim. Porque nesse trabalho da palavra, não tem como não passar pela poesia concreta e a sua ligação com a sonoridade das palavras, sua inconformidade com as tradições. Não passar pela construção e a busca por uma nova linguagem.
Então, o período da poesia concreta é um dos momentos mais ricos da nossa construção de linguagem poética no Brasil. Não é o movimento que questiona compositores serem poetas, por exemplo. Ela abraça esse elemento, entende Caetano Veloso, anuncia os surgimentos da Tropicália, da poesia. Dessa característica da poesia brasileira que é ser muito musical.
E eu sou de uma tradição da declamação sem música. A ausência de adornos, a ausência de ferramentas para sustentar aquela palavra dita. Mas não tenho dúvida, sim, sou da declamação.
Minhas primeiras ações artísticas eram apenas um microfone, quando tinha. Por isso a minha relação com o grão da voz, o corpo da voz. Ela é carregada de musicalidade. E ela também muda a sua imagem através do som.
Como você vai levar o disco para os palcos? Quer estar presente em festivais, por exemplo?
Nós podemos ser muitas coisas, não é? Eu gosto muito desse lugar da potência artística, de ser coisas que nem imaginamos que podemos. Ter essa abertura, ter a arte como uma realidade aberta. Estamos em processo, ainda não terminamos. Mas uma coisa que me liga é a metáfora do código. Eu também sinto que o universo é uma realidade aberta, que sou uma realidade aberta. É uma busca mesmo, ser diferente do que eu venho.
No Cordel do Fogo Encantado, eu tenho consciência que mensagem é aquela. Eu percebo o que me atravessa e o que sou responsável por conduzir, por por estar ali na frente, por ser a pessoa que fala sobre. E sou um instrumento daquela ideia do Cordel do Fogo Encantado. Aqueles tambores, tudo que envolve todos aqueles músicos, aqueles ogãs.
Fui entendendo tudo isso com o tempo e, neste trabalho solo, busco um outro lugar. Me sinto muito feliz por conseguir construir algo, porque também não é meramente uma substituição ao que faço no Cordel. Então isso me enche de força.
Estou querendo atuar mais na vanguarda musical e performática, então é um espetáculo que estou começando a montar. E é realmente um desafio para um festival desses que conhecemos. Vamos ver se, quando ficar pronto, ele dialoga. Eu imagino que sim, mas busco algo mais radicalmente na fronteira entre o teatro, a música, a poesia. Um espetáculo mais denso, mais marcado, mais ligado às tradições da performance.
Confira a entrevista completa de Lirinha ao repórter Artur Tavares, da Bravo! acessando aqui.
Confira abaixo o visualizer de Antes de Você Dormir, primeiro single do MÊIKE RÁS FÂN.
Da redação De Primeira Categoria.
Reportagem: Artur Tavares/Revista Bravo!
Foto: Divulgação/Redes Sociais.
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